As Cartas Estéticas de SCHILLER
e a Trimembração Social
Este artigo faz referência à Johann Christoph Friedrich
Schiller (1759–1805), no sentido de referendar a
Trimembração Social. A dialética schilleriana visualiza três forças presentes
no ser humano e relaciona com o Estado (Organismo Social). Pode-se dizer que
Schiller é o precursor do “Organismo Social Trimembrado”, proposta de Rudolf
Steiner para o futuro da humanidade, meta ainda muito distante do homem
moderno; mas que deve ser almejada, a partir desta abordagem.
Aspectos mais aprofundados sobre a Trimembração do Organismo Humano como
do Organismo Social, deverão ser buscados em Rudolf Steiner, em outros
escritores e em outros títulos deste autor (no site citado
abaixo). Este almeja apenas abrir o tema para novos olhares.
Para quem não conhece, Schiller foi
poeta, autor dramático, historiador, filósofo e médico alemão. São famosas as
suas obras: “A Donzela de Orleãs, Os Bandoleiros, Dom Carlos, Maria Stuart,
Guilherme Tell etc”.
No seu livro Cartas sobre
a Educação Estética da Humanidade, Schiller aborda as duas
tendências polares existentes no ser humano, as quais mostram impulsos próprios
e inconciliáveis. Para um impulso não anular o outro, é preciso buscar o terceiro
elemento, o qual ele denomina de Impulso do Jogo (ou
Impulso lúdico ou pode-se dizer diplomacia ou vulgarmente de “jogo de
cintura”): "O homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra;
e somente é homem pleno quando joga".
Somos impulsionados por dois polos,
que Schiller nomeia de “impulso sensível” e “impulso formal”;
ou dizendo de outra maneira: de impulso metabólico e impulso cerebral,
respectivamente. O primeiro é egoísta, primitivo e violento, regido pela
força bruta; o segundo tem caráter moral e censor, por causa da nossa
evolução histórica. Para referendar melhor este assunto, Freud diz: o primeiro
nasce do id, que ele denomina de pulsão, o qual
corresponde a uma força que nasce do profundo inconsciente-sexual-metabólico
(centrado no abdômen, no baixo ventre). Por isso se necessita do Ego,
que nasce da região cefálica (no outro pólo), para dominar essa força
“insaciável por riquezas”, segundo Platão (Rep. 442ª), que vem da região
metabólico-inconsciente, como se disse acima. Só que essa visão
platônico-freudiana procura destruir o impulso sensível (o id, o inconsciente),
estampada na imagem da serpente mordendo o próprio rabo (uroboro).
Essa era a forma antiga de combater essa tremenda força que nasce do profundo
metabolismo-inconsciente (kundalini).
Ou seja, nada mais contraditório do
que as tendências opostas desses impulsos: um aspira à “variação” (o sensível,
o id) e o outro à “imutabilidade” (o formal, o Ego). Como ele diz: Sem dúvida
esses dois impulsos esgotam o conceito de homem, de tal sorte que um terceiro
impulso fundamental que sirva de intermediário entre os dois primeiros
deva nascer.
Aponta nova possibilidade de o homem
evoluir, sem destruir o impulso inferior (animalesco, instintivo, que ele
nomeia de “sensível”), centrado no metabolismo-inconsciente (abdômen). Para
isso ele sugere a presença do terceiro elemento (centrado no
coração), como mediador das forças polares (centradas na cabeça e no abdômen).
Chega-se assim às três qualidades psíquicas (da alma) = Pensar, sentir e atuar
(ou dizendo de outra forma = consciente, subconsciente e inconsciente) –
distribuídas na cabeça, coração e abdômen, respectivamente.
No entanto ele é magistral por
apontar outra realidade por detrás dessas três qualidades anímicas: “nós não
somos porque pensamos, queremos, sentimos. (...) Nós somos porque somos. Nós
sentimos, pensamos ou queremos porque além de nós existe algo diverso. A
pessoa, pois, tem de ser seu próprio fundamento, já que o permanente não pode
resultar da modificação; teríamos assim, inicialmente, a ideia do ser absoluto
fundado em si mesmo; isto é, a liberdade”.
Ou seja, por detrás dessas três
manifestações anímicas vige “a ideia do ser absoluto fundado em si mesmo” (o
Eu, o espírito humano); isto é, onde reina a “liberdade”. E a liberdade, como
diz R. Steiner, só existe no espírito humano, centrado no “coração diastólico”
(no centro do ser humano, onde atua também o “terceiro elemento” de Schiller,
através do "coração sistólico").
Para essa fundamentação se tornar
realidade, precisa ser “causado” (ter nascido), já que o homem não é absoluto (para
pensar é preciso que eu exista, que eu tenha nascido – René
Descartes). Ou seja, além de existir o “eterno” no homem centrado no seu Eu
espiritual (o absoluto em si mesmo), o efêmero depende do vir-a-ser,
do “tempo”. Nesse sentido pode-se dizer que o Eu (espírito) é o elemento eterno
em nós e a alma, para se tornar realidade no mundo, vive no “tempo”.
Para resolver essa questão de
polaridade humana, como ele diz, precisa-se tomar o caminho da Estética, porque
a “liberdade” se chega pela “Beleza”. Através da consciência, é preciso
transformar o “homem natural” em “homem moral”. O homem natural (virginal)
é aquele que não deriva em sua origem de leis, mas de força. É certamente,
contrário ao homem moral, para o qual a legalidade deve ser a lei; mas não é
suficiente para o homem físico, em que a lei é submeter-se à força. O homem
físico é real e o homem moral é problemático. Se, pois, a razão destrói o homem
natural – como forçosamente há de fazê-lo, para colocar em seu lugar o homem
moral – arrisca o homem físico-real, por um homem moral-problemático; arrisca a
existência de ideal de homem meramente possível, mas moralmente necessário.
O homem natural é egoísta e violento,
tende mais à destruição do que à conservação. Tampouco se pode falar em caráter
moral, pois que, por hipótese, este caráter há de ser objeto de formação e
educação e, porque, sendo livre e nunca dado à experiência, não cabe manejar e
calcular com segurança seus efeitos. Trataria de quitar-se ao caráter físico o
capricho, e ao moral a liberdade; trataria de obrigar ao primeiro a curvar-se
às leis e ao segundo a depender das impressões. Em suma: tratar-se-ia de criar
um terceiro caráter, a fim aos dois primeiros, que formará um
trânsito de regime de simples força ao regime das leis e, sem entorpecer o
desenvolvimento do caráter moral, fosse como uma garantia sensível à invisível
moralidade.
Totalidade de caráter há de ser o
homem digno e capaz de trocar o impulso de necessidade em impulso de Liberdade.
Qual é a causa, pois, desta inferioridade dos indivíduos, quando tão superior é
a espécie? Por que o individuo na antiga Grécia é um representante qualificado
de seu tempo e, no entanto, não há entre os modernos quem se atreva a pretender
semelhante galardão?
Porque aquele recebeu a sua formação
da natureza, que tudo engloba, e este recebeu a sua formação do intelecto, que
tudo separa. Este desmembramento, esta dicotomia, iniciado no interior do homem
pela arte e erudição, se aperfeiçoou e generalizou no novo homem moderno. Em
lugar de levarmos uma vida animal mais aperfeiçoada, nós temos rebaixado a uma
mecânica vulgar e grosseira. Aquela natureza do antigo grego permitia ao
indivíduo gozar de uma vida independente, sem prejuízo de desaparecer no todo.
Agora o homem se vê separado de tudo, como tendo sido criado por acaso na
poeira cósmica e se educa como mera partícula desconexa, tornando-se um reflexo
de seu trabalho e de sua ciência.
O espírito especulativo-filosófico,
aspirando a conquista do mundo, teve que se fazer estranho ao mundo das ideias,
domínios imperecíveis; teve que se fazer estranho ao mundo dos sentidos e por
sua forma perdeu a matéria. O espírito profissional-tecnicista, encerrado entre
objetos e fórmulas rígidas, viu-se privado da visão livre do conjunto; com isso
a pobreza de sua esfera de ação fez empobrecer sua atividade.
O primeiro caiu em tentação de
modelar a realidade conforme seu pensamento. O segundo, em troca, chegou
ao extremo oposto, julgou a experiência por um fragmento particular de sua
experiência, em detrimento de todos os demais.
Assim, o pensador abstrato tem o
coração frio, pelo costume de analisar as impressões que comovem a alma em todo
conjunto; e o profissional tecnicista, por sua parte, é aquele de coração
estreito, porque a sua imaginação, reclusa no circulo uniforme de
especialidade, não pode estender-se a outras formas representativas.
O exercício unilateral das faculdades
conduz, sem dúvida, os indivíduos a erros inevitáveis. No entanto é falso dizer
que a educação das faculdades particulares acarrete necessariamente sacrifício
do conjunto. Para conseguir que a totalidade de nosso caráter, empobrecida pela
erudição, seja reedificada, devemos buscar por uma arte mais sublime.
Cabe esperar do Estado que realize
essa transformação? – Impossível! O Estado, tal como está hoje constituído, tem
sido o causador do mal. Devemos concluir que todo intento de modificar o
Estado, toda a esperança posta em tal modificação são extemporâneos e
quiméricos; e se seguirão sendo assim, a não ser que essa divisão do homem
(trimembração) seja conhecida e aplicada no organismo social.
Velar para que nenhum dos dois
impulsos viole a fronteira do outro é um problema da Cultura, a
qual está obrigada à administrar justiça à ambas as tendências; não só
defendendo o impulso racional contra o sensível, também este contra aquele.
Schiller vê duas incumbências da Vida Cultural: proteger a sensibilidade contra
os ataques da liberdade; e, proteger a personalidade contra o poderio das
sensações. O primeiro consegue-se educando a faculdade do sentimento e o
segundo educando a faculdade da razão. No fundo, este autor acha que a Vida
Cultural deve nutrir espiritualmente a atuação do homem, para que ele se torne
"moralmente produtivo" (como se disse, é uma meta para o futuro
da Humanidade).
Este novo impulso é o IMPULSO
do JOGO, que introduz forma na matéria e realidade na forma. O objeto
do Impulso do Jogo pode ser representado em um esquema
universal, que ele denomina de Figura viva, conceito que serve para
indicar todas as propriedades estéticas dos fenômenos. Em um amplo sentido, ele
chama de “Beleza” (estética). O homem não é nem matéria exclusivamente, nem
espírito de modo exclusivo. A “beleza”, pois, não pode ser exclusivamente vida
nem tampouco ser exclusivamente figura. A beleza é objeto comum aos ambos
impulsos; quer dizer, é o “impulso do jogo”. Encontra-se no meio entre a lei e
a necessidade. No que goze a beleza, isto é, na unidade estética, verifica-se a
união real, uma complexão da matéria com a forma e a passividade com a
atividade, pelo qual fica demonstrado que ambas as naturezas são conciliáveis,
que o infinito pode realizar-se no finito e que o homem pode ascender ao
sublime.
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Portanto, na visão deste autor,
seguindo a dialética schilleriana, nascemos no “tempo”, inocentes e
virginais. Mas por causa da necessidade histórica evolutiva (ananké),
fomos contaminados pelo "mal" (o mal vive na alma humana – Platão),
o que fez violentos e agressivos. Nessa primeira fase vivíamos na alma
inconsciente (alojada no metabólico), a qual é nomeada de "id ou
sensível". Em uma segunda fase histórica, nasce o segundo impulso (Ego,
formal), cujo intento é dominar o primeiro (serpente mordendo o próprio rabo).
Pode-se dizer que até aqui a vida, a educação, a cultura do povo, nos leva. Na
terceira fase evolutiva, há a necessidade do esforço individual, em fazer
nascer o terceiro elemento, o “impulso do meio”, do
sentimento, do impulso do jogo, cujo objetivo é gerar equanimidade entre os
pólos.
Só que nessa esfera central (no
coração) vigem dois impulsos, que podem ser traduzidos como sístole e diástole.
No primeiro caso, a alma comprime o coração e isso gera “o sentimento”, o
qual por sua vez equilibra os polos. Somente dessa maneira (através do
sentimento), nos tornamos humanos e podemos nos relacionar com os outros
socialmente. A este, Schiller nomeia de terceiro elemento, "o impulso do
jogo"; o qual significa estar presente conscientemente no mundo
para discernir e gerar equanimidade entre os polos sensível e formal. O outro
impulso existente no coração chama-se diástole, o qual corresponde
ao repouso cardíaco. Somente nesse ínfimo momento de “silêncio cardíaco”, atua
a “ideia do ser absoluto fundado em si mesmo”, o espírito, o Eu humano. Aí
entramos no reino aristotélico-goethiano, do bastão segurando a
serpente (símbolo da medicina).
Numa grande tela panorâmica da
evolução do Pensar Humano, vemos Platão com sua
"República", consubstanciando as três qualidades anímicas
em referência ao Organismo Social. Schiller, nas suas "Cartas
Estéticas", dá sequência a esse pensar platônico e chega no
"terceiro elemento" (esfera do meio = coração sistólico). Mas não para
aí; toca na "ideia do ser absoluto fundado em si mesmo" (no
Eu, no espírito), domínio de Aristóteles e Goethe. Este é o link, é a
linha divisória, que se deve procurar em Schiller. Nesta singela passagem
literária, os quatro grandes se encontram. Nesse ponto adentramos em
Aristóteles com seu Organon, o qual com seu pensar
aristotélico dá sequência em Goethe, com seus "Ensaios
Científicos".
Como foi falado no começo, o autor
almeja apenas abrir o tema para novos olhares, a partir dos mestres do
passado, os quais continuam presentes, através de argumentações
dedutivas, no sentido de referendar nosso atuar.
Dr. Antonio Marques
membro do Conselho Cultural do Brasil
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